Internacionalização FAPESP Week Beijing aproxima pesquisadores do Brasil e da China
De Beijing
Nada como uma boa conversa face a face para reduzir as barreiras criadas pela distância e pelas diferenças culturais que persistem mesmo na era da internet. De 16 a 18 de abril deste ano cerca de 30 dos mais destacados pesquisadores do Brasil e da China se reuniram na capital chinesa para conhecer um pouco mais da ciência de ponta feita nos dois países e avaliar a possibilidade de iniciar colaborações que permitam diminuir o efeito dos quase 20 mil quilômetros e as diferenças linguísticas que os separam. Em um dos salões da Peking University (PKU), a principal instituição de ensino e pesquisa da China e a mais bem colocada nos rankings universitários internacionais, eles assistiram a 28 palestras em áreas tão diversas como medicina e ciências de materiais e participaram de reuniões oficiais – e de conversas informais em almoços, jantares e intervalos para um café ou chá-verde – durante a FAPESP Week Beijing, o sétimo dos encontros internacionais que a Fundação promove desde 2011 com o objetivo de aumentar a projeção da ciência brasileira no exterior e estimular a cooperação com grupos estrangeiros. Apesar de breve, esse primeiro contato permitiu que alguns pesquisadores brasileiros e chineses identificassem afinidades e interesses em comum entre o trabalho de seus grupos e saíssem do encontro com cooperações científicas já em vista. Além das possíveis parcerias entre equipes específicas, o encontro em Beijing terminou com as negociações avançadas de um acordo formal entre a PKU e a FAPESP para apoiar pesquisas em áreas do conhecimento consideradas estratégicas para o Brasil e a China.
Realizada no campus da PKU, no distrito de Haidian, região noroeste da capital chinesa – e não muito longe do Palácio de Verão, a residência que os imperadores passaram a usar no século XVIII para escapar do calor que tomava a Cidade Proibida no meio do ano –, a FAPESP Week Beijing resultou de uma negociação iniciada em junho de 2013, quando uma missão da FAPESP visitou a China. No primeiro dia do encontro em Beijing, Enge Wang, presidente da PKU, a mais alta autoridade da universidade chinesa (seu cargo equivale ao de um reitor em uma universidade brasileira), se reuniu com o presidente da FAPESP, Celso Lafer, acompanhado pelo vice-presidente Eduardo Krieger e o diretor científico Carlos Henrique de Brito Cruz. Na reunião, Enge manifestou a intenção de firmar um acordo de cooperação entre as duas instituições. “A cooperação com a China é prioritária porque os dois países passam por processos similares de desenvolvimento científico e tecnológico”, afirmou Lafer.
Hoje classificadas, respectivamente, como a segunda e a sétima maiores economias do mundo, a China e o Brasil apresentavam uma produção científica bastante modesta três décadas atrás. O número de artigos científicos publicados em revistas internacionais de qualidade era da ordem de umas poucas centenas por ano no início da década de 1980. Desde então, a produção científica dos dois países cresceu continuamente, com a chinesa progredindo num ritmo acelerado jamais observado no mundo. Apenas em 2011 os pesquisadores residentes na China publicaram cerca de 150 mil artigos científicos, o correspondente a 11% da produção mundial, enquanto os brasileiros produziram cerca de 30 mil (2,6% da produção mundial), de acordo com o estudo Building Bricks, publicado pela Thomson Reuters em fevereiro de 2013. Esses números tornam a produção científica chinesa inferior apenas à dos Estados Unidos, um dos países com tradição científica mais consolidada no mundo, de onde sai quase um terço das pesquisas publicadas em revistas da base de dados Web of Science, da Thomson Reuters.
As autoridades chinesas “reconheceram que a pesquisa científica e a educação em nível superior são essenciais para conquistar a liderança global”, escreveram os pesquisadores Philip Altbach, do Centro para Educação Superior Internacional do Boston College, Estados Unidos, e Qi Wang, da Escola de Educação da Universidade Xangai Jiao Tong, na China, em artigo publicado em 2012 na revista Scientific American. Desde o início dos anos 1980, o número de estudantes do ensino superior saltou de 860 mil para 23 milhões e o de estudantes inscritos no doutorado de 280 mil para 1,6 milhão na China.
Dispêndio em P&DCaracterísticas sociais, econômicas e políticas de cada um desses países podem justificar a diferença no ritmo de crescimento. O Brasil tem pouco mais de 100 mil pesquisadores entre seus 200 milhões de habitantes. Já na China, seis vezes mais populosa, o total de pesquisadores alcança 1 milhão. Nos dois países o dispêndio em pesquisa e desenvovimento (P&D) cresceu nas últimas décadas. Mas no Brasil ele estacionou nos últimos anos na faixa de 1,1% do produto interno bruto (PIB), que em 2012 foi de US$ 2,2 trilhões, enquanto na China esse investimento continua aumentando. Segundo dados do Banco Mundial, a China aplicou em 2012 quase 2% do seu PIB de US$ 8,3 trilhões em ciência e tecnologia. E essa proporção deve continuar subindo.
Em 2006 o governo central do que foi o antigo Império do Meio lançou um plano estratégico para o desenvolvimento no médio e no longo prazo, o Medium and Long–term National Plan for Science and Technology Development 2006–2020, que coloca como meta nacional investir 2,5% do PIB em atividades de ciência e tecnologia até o final desta década. “Esse plano representou um ponto de inflexão no desenvolvimento da ciência e tecnologia chinesas”, explicou Zhe Li, vice-diretor do Instituto de Sistemas e Gerenciamento de Ciência e Tecnologia da Academia Chinesa de Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento (Casted), órgão ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia da China, em entrevista à Pesquisa FAPESP. O plano determina que tanto o governo central como os governos das províncias contribuam para atingir a meta de investimento. “Nos últimos quatro anos estes vêm gastando proporcionalmente mais dinheiro do que o governo central”, completou Yan Li, outro pesquisador do Casted.
Eles contaram que após a morte de Mao Tsé-tung, no final dos anos 1970, a China começou a se abrir para o Ocidente e a investir no desenvolvimento industrial baseado na mão de obra barata. “Mas se viu que não dava para depender do trabalho barato o tempo todo”, disse Yan Li. “Os investimentos em ciência e tecnologia são o motor que impulsiona a economia.”
Além de aumentar os gastos em pesquisa e desenvolvimento, a China também implementou um sistema de avaliação dos pesquisadores com base na publicação de artigos científicos em revistas internacionais de qualidade, de modo semelhante ao que ocorreu no Brasil nas últimas décadas. Associada ao processo de repatriamento de pesquisadores de elite treinados no exterior, essa estratégia impulsionou a produção científica chinesa. “Quanto maior o número de publicações, mais rápido se avança na carreira acadêmica”, explicou Yan Li. Em algumas universidades e instituições de pesquisa, estudantes têm de publicar artigos para obter o título de doutor.
Apesar dessa combinação, a qualidade dos artigos chineses, medida pelo número médio de vezes que são citados por outras publicações (fator de impacto), ainda está em muitas das áreas abaixo da média mundial, embora no geral seja superior à do Brasil. A exceção são as áreas de matemática, engenharia, ciências de materiais, biologia e bioquímica e agricultura. A elevada taxa de crescimento da produção chinesa, no entanto, pode camuflar o aumento do fator de impacto dos artigos mais acelerado do que o que vem sendo medido, segundo o estudo China’s absorptive state – Research, innovation and the prospects for China–UK collaboration, publicado em outubro de 2013 pela Nesta, fundação do Reino Unido que avalia políticas de inovação.
Interesse mútuoAssim como no Brasil, a produção científica chinesa está concentrada em um pequeno número de instituições, em geral concentradas na faixa leste do país asiático. A mais produtiva delas é a Peking University, que conta com um orçamento anual para pesquisa de aproximadamente US$ 400 milhões e em 2013 publicou 6.247 artigos, tendo como primeiro autor um pesquisador da universidade. “A entrada na China pela Peking University é muito boa porque essa é uma universidade de muito prestígio na China e no mundo”, disse Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP, que durante o evento apresentou as estratégias de estímulo à cooperação internacional adotadas pela Fundação, em especial a colaboração com universidades e agências estrangeiras de fomento à pesquisa e o apoio para que jovens pesquisadores do Brasil e do exterior iniciem sua carreira científica em São Paulo.
“A Peking University claramente se interessou pela colaboração com a pesquisa feita em São Paulo”, contou Brito Cruz ao final da FAPESP Week Beijing. “Estamos finalizando a discussão de um acordo no qual a FAPESP deve oferecer seed funds para os pesquisadores de São Paulo e a PKU providenciar o mesmo tipo de financiamento para pesquisadores daqui”, explicou.
Com duração que pode variar de poucos meses a um ano, os seed funds são apenas uma forma inicial de fomento, em geral destinados a colaborações com universidades estrangeiras. Seu objetivo é permitir que pesquisadores de São Paulo e de instituições internacionais trabalhem juntos na preparação de projetos de maior fôlego que sejam concebidos, redigidos e executados por equipes de São Paulo e do país parceiro. Desde que passou a investir mais fortemente na internacionalização da ciência de São Paulo, a FAPESP já estabeleceu acordos com várias universidades estrangeiras. Além dessa estratégia, também já firmou acordos de financiamento em conjunto com agências de fomento de ao menos 10 outros países, que resultaram em mais de 300 projetos financiados de 2005 a 2010(ver tabela). “Temos em São Paulo pesquisas muito competitivas internacionalmente”, lembrou Brito Cruz. “Por isso a estratégia não é meramente baseada no envio de estudantes ou no intercâmbio de pesquisadores, mas sim em colocar os pesquisadores para trabalhar de igual para igual, conjuntamente concebendo, escrevendo e submetendo as propostas de pesquisa.”
Além do acordo para oferecer seed funds, o presidente da PKU se comprometeu a trabalhar para que a National Natural Science Foundation of China (NSFC), a agência chinesa de apoio à pesquisa básica e aplicada, atue como financiadora dos projetos envolvendo pesquisadores chineses e brasileiros custeados pela FAPESP. Em uma análise inicial, Brito Cruz considerou “muito bom” o resultado desse primeiro contato.
“Experiências anteriores mostram que uma forma eficaz de incrementar o intercâmbio entre pesquisadores é estabelecer contatos pessoais”, disse o vice-presidente da Fundação, Eduardo Moacyr Krieger, que nos 11 anos nos quais dirigiu a Academia Brasileira de Ciências trabalhou intensamente para melhorar a inserção da ciência brasileira no cenário internacional. “O papel das instituições é promover encontros para colocar os pesquisadores em contato, mas a colaboração se dá sempre entre indivíduos”, lembrou. “Os pesquisadores são muito ciosos de seu tempo e de seus interesses; por isso, se não houver interesse recíproco, a colaboração não sai.”
Mesmo antes da formalização do acordo entre a FAPESP e a PKU, grupos de São Paulo e da universidade chinesa que trabalham com medicina molecular e biologia de plantas já demonstraram interesse em desenvolver projetos em conjunto. No segundo dia do encontro, a cardiologista Rui-Ping Xiao convidou os médicos Eduardo Moacyr Krieger e José Eduardo Krieger, pai e filho, ambos do Instituto do Coração (InCor) da Universidade de São Paulo (USP), para conhecer o Instituto de Medicina Molecular da PKU, criado e dirigido por ela. Rui-Ping Xiao e seu grupo investigam os mecanismos genéticos e moleculares associados à síndrome metabólica, desequilíbrio no processamento de energia do organismo, marcado pela elevação dos níveis de açúcar (glicose) e lipídeos no sangue e associado ao aumento do risco de problemas cardiovasculares. Recentemente eles identificaram alterações genéticas que impedem os músculos de aproveitar adequadamente o hormônio insulina, responsável por transportar a glicose, principal fonte de energia celular, para o interior das células musculares. Como consequência dessas alterações, surge a chamada resistência à insulina, uma das causas da síndrome metabólica.
Depois de passar quase duas décadas como pesquisadora nos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados Unidos, um dos maiores centros de investigação médica no mundo, Rui-Ping Xiao foi convidada pelo presidente da PKU em 2005 a retornar ao seu país de origem e a conceber um centro de medicina molecular na universidade chinesa. Hoje ela coordena o trabalho de quase 200 pessoas que realizam testes com roedores, porcos, macacos. Os pesquisadores do Instituto de Medicina Molecular da PKU também estão começando a participar das fases iniciais de testes em humanos de compostos desenvolvidos por Rui-Ping Xiao durante o período que passou nos NIH. “O José Eduardo Krieger me convidou para iniciar uma parceria para estudar reparação cardíaca”, contou Rui-Ping Xiao depois de apresentar os resultados de seu grupo no último dia do encontro em Beijing. “Eu adoraria. Ele tem feito estudos com porcos e aqui temos macacos. Talvez a gente consiga fazer algo em conjunto.”
José Eduardo Krieger confirmou o interesse na cooperação depois de apresentar dados animadores que sua equipe no InCor obteve ao usar células-tronco implantadas diretamente no coração para auxiliar na recuperação cardíaca depois do infarto. “Aqui eles têm um modelo experimental com minipigs, uma raça de porco que não cresce muito e reduz o espaço necessário para a criação e manutenção dos animais.”
Na USP, os estudos em biologia molecular são desenvolvidos por laboratórios instalados em diferentes institutos, como o InCor e o do Câncer. Mas não há um centro com todos os recursos como o da Peking University, comentou Eduardo Moacyr Krieger. “Um instituto como o da PKU permite fazer não só a translação do conhecimento da bancada para a área clínica como também algo que ainda é polêmico, e se começa a pensar que a universidade deve fazer um pouco, que é a inovação”, disse. Ao dar um passo além, as universidades e os institutos públicos de pesquisa complementariam o papel da indústria. “O problema da saúde é tão complexo que o poder público não pode ficar afastado da responsabilidade de também criar novas drogas”, comentou Krieger. “A indústria tem uma lógica própria, enquanto o Estado pode fazer investimento em certas moléculas que por alguma razão não são tão atraentes para o setor comercial.”
Biologia de plantasOutra área que pode render uma cooperação em breve é a de biologia de plantas. Durante a FAPESP Week Beijing, o biólogo molecular Hongwei Guo, da PKU, e o botânico Marcos Buckeridge, da USP, demonstraram interesse recíproco nas pesquisas. Guo e sua equipe investigam os mecanismos moleculares pelos quais o hormônio vegetal etileno atua, induzindo o desenvolvimento e também a senescência nas plantas. Usando estratégias de genômica e proteômica, eles verificaram nos últimos anos que mudanças no ciclo de claro-escuro, estressores ambientais, infecções alteram a produção de etileno. Já Buckeridge tem interesse em compreender como o etileno pode influenciar a degradação da parede celular da cana-de-açúcar, importante para a produção do chamado etanol de segunda geração. Atualmente, o etanol é produzido a partir da quebra da celulose, um dos açúcares que forma a parede celular da cana. Mas a celulose representa apenas 30% desses açúcares e o aumento da produção de etanol depende da capacidade de quebrar outros açúcares. Na USP, o grupo de Buckeridge vem trabalhando para caracterizar a ação dos hormônios vegetais, entre eles o etileno, na degração da parede celular da raiz da cana.
Como o grupo de Guo já conhece os genes relacionados à ação do etileno, a interação com a equipe da USP poderia acelerar a compreensão de como regular esse fenômeno. Buckeridge imagina que, uma vez entendido esse passo, seria possível tentar controlar a atividade dos genes que induzem a produção de etileno e a degração da parede celular no colmo, o grande reservatório de açúcares da cana. “A interação com o grupo de Guo tem o potencial de acelerar a transferência desse conhecimento”, disse. “Em seguida, poderíamos usar modelos de gramíneas que crescem mais rápido, como a Setaria ou aBrachipodium, para fazer um teste de prova de conceito enquanto paralelamente trabalhamos na cana.”
http://revistapesquisa.fapesp.br/2014/05/15/barreiras-desafiadas/
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